sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Ancoradouro

 Que coisa! Nada a falar, mas direi algo. O que é a poesia? Nunca se saberá e se o sei não posso revelar. Dou a dica: é isto que vai abaixo. escrito por Marcelo Novaes, admirado por Wellington Guimarães, ainda que o mundo inteiro nos ignore ( e por qual motivo não iria ignorar?) ele é o poeta e eu sei admirar.




Marcelo Novaes


Sua sombra batendo seus passos
e desembarcando, sem propósito,
na praça central do mercado.

E ele que já fora o bardo, o poeta,
o homem nu na planície vermelha,
agora mais da metade veias lombo
punhal metal prateado.

Quase metade olhos de viuvez,
outra maior metade: orfandade.

Bigode grisalho e barba,
cobertor de estopa [que
é também agasalho],

quase metade calor sarjeta
[tanto faz o clima], a maior metade
longe:  contas do rosário.

[Ou túmulo]
 
Velho marinheiro aposentado,
mais da metade inválido – solidão,
súplica de boca fechada,

terra até o calcanhar areia
cheiro de bacalhau, meio casca
grossa, meio lascado pelo sol [e
pelos pesadelos].

Poucas vezes lançando seus
gritos na planície vermelha
[quando só, só quando] , com
o toco de cigarro aceso entre
os dedos.

Velho marinheiro magro
com seu cotovelo ossudo
fumando nos degraus da igreja,
do hospital, nas soleiras das casas,
na penumbra do outono, sem saber o
caminho ao mar de volta [nem como
devolver água à água e sal ao sol],

com dois pés no sonho,
pisando hastes de trigo
seco [ou joio],
 
quer seja ali chão de
pedra ou cimento [de
lã ou linho],

os olhos fixos no
pássaro marinho,

meio mareado meio
flutuando, meio perdido no trajeto
curvo das gaivotas [e das aves todas],

lembrando do velho santo de madeira
do pau oco e do profeta de gesso [ou pedra]
feito pelas mãos do Aleijadinho.

Na própria mão, o saco de estopa, 
na testa as veias em alto relevo,

uns poucos versos na memória
e a ficção que hoje é a voz dela:
a sereia.

Aquele verão não durou,
o tempo foi traiçoeiro [meio
tanto meio tarde meio lento],
avançando na água e enchendo
a canoa d'água [a propósito, pela
metade – não inteira] - de água
verde.

A âncora enferrujando ao
fundo do mar salgado,

os dedos amarelos de ferrugem
e pelo fumo picado, enferrujando,
a proa singrando o mar anacrônico
meio tarde meio cedo meio além
-do-tempo-do-mar-sem-tempo,

a proa do barco singrando a imensidão
da paz ondulante excessiva celeste.

[E o carrilhão de nuvens].

A boca vincada, os olhos
insones remelentos, os versos
imorais pesados [ah, o velho sujo:
Charles Bukowski],

o toco de cigarro na mão, a luz salgada,
o hálito triste e lascado por dentes
colecionando cáries,

a fronte quebrada e alquebrada no frio
dos batentes das portas e esquadrios
das janelas emperradas [que não mais 
abrem],

olhos amarelos
como os do leopardo

[olhos amarelos de icterícia,
de cirrose],

fiapo de voz antes do grito vermelho,
ócio e caminhadas na voz quase apagada
ao entardecer ao enegrecer ao vermelhecer
do tempo,

fiapos de voz na arrebentação vespertina
das velhas ondas e na maresia presa no
olfato e na garganta,

fiapos de voz um só fiapo no tombo e na
queda seca,

fiapos de voz nas costas encurvadas nas
marés baixas no ancoradouro.

Fiapos de voz na onda negra e na planície
vermelha,
versos rezas ao anoitecer ao entardecer e
nas manhãs frias de lamúrias veladas pela
ventania.

Saudade da paz dos grilos sob a trovoada
gigante,

do punho cerrado de Deus contra os homens
[e de seu punho cerrado clamando a Deus na
planície],

agora sem poder acreditar arquejante trêmulo,
cinquenta e poucos anos de versos e genuflexão
de joelhos dobrados e se dissolvendo em ternura
e sal

[aquela ternura borrada de amarelos],

sem poder acreditar no céu rabiscado na chuva
encharcando os ossos, sem poder acreditar na
cortina d’água prateada e na tristeza como
personagem principal.

Cinquenta e poucos anos tão mal gastos e
sem poder acreditar nos ventos mornos
no pólen no caminho de volta pra aldeia,
cinquenta e poucos anos sem poder
acreditar no verbo, mas mesmo assim rezando
recitando e rezando recitando e rezando versos
de marinheiro de louco de ébrio de velho-que
-vale-pouco-porque-quase-morto, na extensão
da interminável planície,
 
sem poder acreditar nas tantas
cicatrizes,

na inocência e na passagem do
tempo,
 
nos fetos e nos rebentos que não
vingaram,

sem poder acreditar no poente,
no sonho abatido a machadadas,

sem poder acreditar nas derrotas
do comissário do almirante, no tempo
que passou sem avisar, nas pedras do tabuleiro,
na  conclusão do jogo, no fim do amor.

Sem poder crer na face coberta de
uivos,

nos musgos do mar e moluscos,
na solidão das algas e corais

[no arfar dos peixes miúdos],

sem poder crer na imperturbabilidade
das pedras e na mudez da música que
se desfez, na fábula que se desfaz,
sulcando as ondas mais ao sul,

com seus cabelos despenteados pelo
vento [Heitor ou Homero]: remo de madeira
cortado ao meio,

garça que se parte em voo
[graça de pintura chinesa],

meio mínimo demais meio aranha sem
três patas, meio espectro meio roxo meio
véu rasgado, velho macilento e marinheiro,
meio camponês sem achar o seu chapéu de
palha,

meio cego meio coxo meio eletrificado meio
perdido meio morto meio cambaleando molhado e
torto meio trêmulo e torturado em seu ferido orgulho
de soldado do mar sem arma [corda, anzol, casa ou trabalho],

examinando os danos nas pastagens secas,
os lagartos deitados nas sombras, os ratos
da planície, sem poder acreditar nos braços
flácidos,

na fome na velhice no temporal no xale de
flores [nas lágrimas sem som, na dor sem
ruído],

nos bulbos ressecados das plantas de ontem,
na aspereza lisa das conchas do mar, na febre
e na voz que se esconde na nervura da folha que
se esquece ao longe, na carroça abandonada, no cavalo
que morreu de peste e no poste que tombou apagando
as luzes.

Sem poder crer na lua minguando no céu
envernizado de preto,

nas manchas do leopardo,
no gatinho perdido no meio
do capim alto - soluçando, soluçando,
soluçando.

Cinquenta e poucos anos e sem poder
acreditar no calhamaço de notas sem valor,
nos lustres na balaustrada nos homens ilustres,
no porto no ancoradouro, meio tolo meio falso meio
fake meio freak meio foda meio inteiro desgraçado
- por isso mesmo, pela metade,

por isso mesmo com vontade de morrer mais
do que tudo no branco harmonioso do nada do
esquecimento, no silêncio ermo de um precipício
d’ água sem princípio

[morrer no Início da Criação, antes de ter sido],

morrer de bruços num mar de brumas
sob um céu sem pátria num poente cor
de rosa, morrer pelo resto de sua vida sem
dor sem alarde sem saudade sem ninguém

[a lhe zumbir no ouvido canções estéreis],

morrer na solidão da planície,

trocando a pena de viver pela pena de
um corvo, no verso de Edgar Allan Poe.

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