sexta-feira, 27 de outubro de 2017

PARA MEU BRANCO


Para tudo quanto é luz te leve a vida.
Para tudo que é de Deus te leve o rumo.
Seja tua força sempre maior que o teu peso.
Seja maior tua esperança que o cansaço.
Saia de tu somente o que fomenta, medra, cria.
Saia de ti todo o mal, toda torpeza\.
O tempo te ensine mais que passe.
O tempo te melhore e conserve o que é bom hoje.
Tudo te será melhor a medida que melhor ficardes.
Tudo te será melhor se do Cristo te aproximares.
Seja o que és sem preocupar-se com os outros.
Seja solidário, compreensivo com teus detratores.
Te vendo crescer, cresci e continuo na luta.
Te vendo  existir já por si me dou por satisfeito.
Nunca estaremos longe por medidas humanas. 
Nunca estarás só quando quiserdes minha companhia.
Não é a tu que devo toda a tua alegria em mim, é a Deus, que fez você do nada ser o que é.
Nada se pode dizer-se dono, tudo tem fim quando nos vamos,  mas o amor de pai para filho ficará em todos o sempre, enquanto houver sempre, enquanto houver amor. 
Filho, seja tudo o que quiseres menos mau. Ainda contra mim, ainda contra o mundo, tua seta seja o bem, teu guia, o Nazareno, tua força, a esperança, tua vida seja luz.
Sou prolixo? Digo que pra dizer o quanto te amo precisaria não de espaço ou tempo (não haveria livro que coubesse nem viverei 2000 anos) mas o muito que digo "te amo" é menos do que o que eu sinto. Sempre onde estiveres lembra uma coisa e guarda: Onde eu quiser um abraço, ainda que o mais vil dos homens não me dê, por estar errado, por não merecer, terei o de meu pai. 
Meu beijo e meu abraço para tu, feliz aniversário! Jesus te proteja sempre e vá contigo aonde for.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Sou





Gosto de falar de mim mas sempre por inteiro. Nunca só o bom, nunca só defeitos. Nunca me exaltando, nunca me rendendo; Nunca com piedade, sempre com condescendência, não a dos descarados, mas as do que sabem que precisam se ajoelhar, baixar a cabeça e só erguer a fronte ante quem a si próprio assoberba, 
Gosto de falar dos outros, mas só dos que amo ou admiro, nunca do vizinho, nunca do menor, nunca do pouco e do pequeno. Sou o que está longe de ser bom e justo. Sou o que troca as coisas, erra, erra de novo e mais uma vez, mas nunca pelo mal em si, pelo mal em mim. 
Sou o que gosta sem medo de doer, sou o que chora mas sabe sofrer. Sou o que não vale nada mas grangeia amizades e carinho.  Sou o que mesmo estando errado desperta carinho ou piedade.
Sou o que trava, o que tem dificuldades, as vezes de andar, as  vezes de descobrir a verdade, as vezes de voltar quando já foi muito ao mar, as vezes de rezar, outras amaldiçoar. Sou igual a todos e ninguém é igual a mim. Sou o mais errado estando certo ao fim. Sou dos defeitos desmesurados e qualidades contadas, o que sabe descer, subir e cair inteiro; O que se levanta rápido, o que tem duas cicatrizes no peito; O que está aqui para sorrir e chorar do mesmo jeito, as vezes pelo mesmo motivo, as vezes sem motivo sem nada, só pra mostrar que estou vivo, só pra viver e mais nada.

MARCELO NOVAES


ANCORADOURO




Sua sombra batendo seus passos
e desembarcando, sem propósito,
na praça central do mercado.

E ele que já fora o bardo, o poeta,
o homem nu na planície vermelha,
agora mais da metade veias lombo
punhal metal prateado.

Quase metade olhos de viuvez,
outra maior metade: orfandade.

Bigode grisalho e barba,
cobertor de estopa [que
é também agasalho],

quase metade calor sarjeta
[tanto faz o clima], a maior metade
longe: contas do rosário.

Velho marinheiro aposentado,
mais da metade inválido – solidão,
súplica de boca fechada,

terra até o calcanhar areia
cheiro de bacalhau, meio casca
grossa, meio lascado pelo sol [e
pelos pesadelos].

Poucas vezes lançando seus
gritos na planície vermelha
[quando só, só quando] , com
o toco de cigarro aceso entre
os dedos.

Velho marinheiro magro
com seu cotovelo ossudo
fumando nos degraus da igreja,
do hospital, nas soleiras das casas,
na penumbra do outono, sem saber o
caminho ao mar de volta [nem como
devolver água à água e sal ao sol],

com dois pés no sonho,
pisando hastes de trigo
seco [ou joio],
 
quer seja ali chão de
pedra ou cimento [de
lã ou linho],

os olhos fixos no
pássaro marinho,

meio mareado meio
flutuando, meio perdido no trajeto
curvo das gaivotas [e das aves todas],

lembrando do velho santo de madeira
do pau oco e do profeta de gesso [ou pedra]
feito pelas mãos do Aleijadinho.

Na própria mão, o saco de estopa, 
na testa as veias em alto relevo,

uns poucos versos na memória
e a ficção que hoje é a voz dela:
a sereia.

Aquele verão não durou,
o tempo foi traiçoeiro [meio
tanto meio tarde meio lento],
avançando na água e enchendo
a canoa d'água [a propósito, pela
metade – não inteira] - de água
verde.

A âncora enferrujando ao
fundo do mar salgado,

os dedos amarelos de ferrugem
e pelo fumo picado, enferrujando,
a proa singrando o mar anacrônico
meio tarde meio cedo meio além
-do-tempo-do-mar-sem-tempo,

a proa do barco singrando a imensidão
da paz ondulante excessiva celeste.

[E o carrilhão de nuvens].

A boca vincada, os olhos
insones remelentos, os versos
imorais pesados [ah, o velho sujo:
Charles Bukowski],

o toco de cigarro na mão, a luz salgada,
o hálito triste e lascado por dentes
colecionando cáries,

a fronte quebrada e alquebrada no frio
dos batentes das portas e esquadrios
das janelas emperradas [que não mais 
abrem],

olhos amarelos
como os do leopardo

[olhos amarelos de icterícia,
de cirrose],

fiapo de voz antes do grito vermelho,
ócio e caminhadas na voz quase apagada
ao entardecer ao enegrecer ao vermelhecer
do tempo,

fiapos de voz na arrebentação vespertina
das velhas ondas e na maresia presa no
olfato e na garganta,

fiapos de voz um só fiapo no tombo e na
queda seca,

fiapos de voz nas costas encurvadas nas
marés baixas no ancoradouro.

Fiapos de voz na onda negra e na planície
vermelha,

versos rezas ao anoitecer ao entardecer e
nas manhãs frias de lamúrias veladas pela
ventania.

Saudade da paz dos grilos sob a trovoada
gigante,

do punho cerrado de Deus contra os homens
[e de seu punho cerrado clamando a Deus na
planície],

agora sem poder acreditar arquejante trêmulo,
cinquenta e poucos anos de versos e genuflexão
de joelhos dobrados e se dissolvendo em ternura
e sal

[aquela ternura borrada de amarelos],

sem poder acreditar no céu rabiscado na chuva
encharcando os ossos, sem poder acreditar na
cortina d’água prateada e na tristeza como
personagem principal.

Cinquenta e poucos anos tão mal gastos e
sem poder acreditar nos ventos mornos
no pólen no caminho de volta pra aldeia,
cinquenta e poucos anos sem poder
acreditar no verbo, mas mesmo assim rezando
recitando e rezando recitando e rezando versos
de marinheiro de louco de ébrio de velho-que
-vale-pouco-porque-quase-morto, na extensão
da interminável planície,
 
sem poder acreditar nas tantas
cicatrizes,

na inocência e na passagem do
tempo,
 
nos fetos e nos rebentos que não
vingaram,

sem poder acreditar no poente,
no sonho abatido a machadadas,

sem poder acreditar nas derrotas
do comissário do almirante, no tempo
que passou sem avisar, nas pedras do tabuleiro,
na  conclusão do jogo, no fim do amor.

Sem poder crer na face coberta de
uivos,

nos musgos do mar e moluscos,
na solidão das algas e corais

[no arfar dos peixes miúdos],

sem poder crer na imperturbabilidade
das pedras e na mudez da música que
se desfez, na fábula que se desfaz,
sulcando as ondas mais ao sul,

com seus cabelos despenteados pelo
vento [Heitor ou Homero]: remo de madeira
cortado ao meio,

garça que viaja em voo
[pintura chinesa],

meio mínimo demais meio aranha sem
três patas, meio espectro meio roxo meio
véu rasgado, velho macilento e marinheiro,
meio camponês sem achar o seu chapéu de
palha,

meio cego meio coxo meio eletrificado meio
perdido meio morto meio cambaleando molhado e
torto meio trêmulo e torturado em seu ferido orgulho
de soldado do mar sem arma [corda, anzol, casa ou trabalho],

examinando os danos nas pastagens secas,
os lagartos deitados nas sombras, os ratos
da planície, sem poder acreditar nos braços
flácidos,

na fome na velhice no temporal no xale de
flores [nas lágrimas sem som, na dor sem
ruído],

nos bulbos ressecados das plantas de ontem,
na aspereza lisa das conchas do mar, na febre
e na voz que se esconde na nervura da folha que
se esquece ao longe, na carroça abandonada, no cavalo
que morreu de peste e no poste que tombou apagando
as luzes.

Sem poder crer na lua minguando no céu
envernizado de preto,

nas manchas do leopardo,
no gatinho perdido no meio
do capim alto - soluçando, soluçando,
soluçando.

Cinquenta e poucos anos e sem poder
acreditar no calhamaço de notas sem valor,
nos lustres na balaustrada nos homens ilustres,
no porto no ancoradouro, meio tolo meio falso meio
fake meio freak meio foda meio inteiro desgraçado
- por isso mesmo, pela metade,

por isso mesmo com vontade de morrer mais
do que tudo no branco harmonioso do nada do
esquecimento, no silêncio ermo de um precipício
d’ água sem princípio

[morrer no Início da Criação, antes de ter sido],

morrer de bruços num mar de brumas
sob um céu sem pátria num poente cor
de rosa, morrer pelo resto de sua vida sem
dor sem alarde sem saudade sem ninguém

[a lhe zumbir no ouvido canções estéreis],

morrer na solidão da planície,

trocando a pena de viver pela pena de
um corvo, no verso de Edgar Allan Poe.

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

O pitão

Madrugada,  acorda o bobalhão, abre a porta e fica da grade olhando a rua. Chega o pai que trabalha de madrugada e o vê; Pergunta-lhe: -- O que estás fazendo aqui? ---ouvindo o galo, responde o menino. Isso é absurdamente belo  e acarinha a alma, e embeleza o feio do dia, e faz da vida algo melhor que respirar e comer, faz a vida ser vivida e sentida, faz não endurecer. esse sim é um grande poeta (o pitão cagão, meu sobrinho) é a própria poesia ou ela posta em palavras e mostrada de dentro, do fundo.
Ele tem o estranho costume (não sei onde aprendeu) de colocar a vogal "I" no final das palavras, sobretudo de nomes próprios. Tem uma estranha maneira de usar os pronomes, as vezes juntando o "me" com o "mim", não como fazem na net, mas fazendo a fusão entre os dois e criando o pronome "mi". Diz, o pitão: mi pai.
O poeta é quem se vale das palavras. Veja bem, "se vale", usa-as a seu favor, usa-as com sentido de gastar, degustar, fumar, ou um sapato. Com o poeta vale tudo (até essa frase ridícula). O poeta vem do menino, esta na criança, vem de antes disso ou, quiça, antes do antes disso. Parafraseando Marcelo Novaes (e aqui tudo a ver porquê o poeta e outro se chamam Marcelo) o poeta é anterior a si mesmo. Não precisa escrever. Aliás, a poesia vivida é muito maior que a escrita; Nenhum beijo terno pode ser tão bem descrito pelo poeta que o ato em si, se bem que Dostoievski descreve um luar np seu conto "Noites brancas" que é mais bonito que o próprio luar, mas isso só na minha cabeça.
O fato é que a poesia não morreu. Morreram os poetas que talvez tenham ficado melhores porque mortos, mas a poesia durará. Enquanto houver sobrinhos, enquanto houverem galos a cantar.

domingo, 22 de outubro de 2017

Yin


Marcelo Novaes


Sobre a velha igreja de pedras
gastas, há uma lua enlutada
com três halos e três véus.

Pura melancolia.

E ninguém parece se dar
conta do seu
estado.

Corpo sobrenadante sobrevoante,
empurrando a nau de chuva.
A própria vigília montada
num cavalo de chuva.

Bruma, gaze, baça garça,
rumor transparente e
transalpino.

Esperança e frio
do inverno da
meia-noite.

Ei-la, ali, gelada e
muda, lua cega fria
injusta, açoitada e
incerta, movediça
em suas
fases.

Lua como poema final
feito em maré rasa.

A lua furando o céu,
doendo na noite
opaca.

Zero absoluto,
gôndola minguante
no breu, ainda ali e já tão
ausentada.

Toda medula e mágoas,
lua sereia apascentando
algas,

pérola entre sargaços,
fábula branca, ninfa
por entre véus,

azulada ou lívida,

joia semi-engastada
no pranto,

antepenúltima nave
do perdão.

sábado, 21 de outubro de 2017

Descobertas

Descobri que não era anjo, cedo.
Descobri não ser o diabo, ontem.
Descobri o que não vou contar, antes.
Descobri o amor dia 28/10/2001.
Descobri o que é lutar com o mal.
Descobri o que é menor com Cristo.
Descobri o que é igual com homens.
Descobri as desigualdades nos palanques.
Descobri onde mora o medo e tenho medo de dizer.
Descobri o que era lindo vendo o feio.
Descobri o que era feio vendo os covardes.
Descobri o que era a mulher vendo uma grávida de esperanças de engravidar.
Descobri o que era a noite quando vi as pontes de Recife na madrugada.
Descobri que o nada não existe.
Descobri que tudo também não.
Descobri que morro, mas depois disso não descobri mais .nada

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Ancoradouro

 Que coisa! Nada a falar, mas direi algo. O que é a poesia? Nunca se saberá e se o sei não posso revelar. Dou a dica: é isto que vai abaixo. escrito por Marcelo Novaes, admirado por Wellington Guimarães, ainda que o mundo inteiro nos ignore ( e por qual motivo não iria ignorar?) ele é o poeta e eu sei admirar.




Marcelo Novaes


Sua sombra batendo seus passos
e desembarcando, sem propósito,
na praça central do mercado.

E ele que já fora o bardo, o poeta,
o homem nu na planície vermelha,
agora mais da metade veias lombo
punhal metal prateado.

Quase metade olhos de viuvez,
outra maior metade: orfandade.

Bigode grisalho e barba,
cobertor de estopa [que
é também agasalho],

quase metade calor sarjeta
[tanto faz o clima], a maior metade
longe:  contas do rosário.

[Ou túmulo]
 
Velho marinheiro aposentado,
mais da metade inválido – solidão,
súplica de boca fechada,

terra até o calcanhar areia
cheiro de bacalhau, meio casca
grossa, meio lascado pelo sol [e
pelos pesadelos].

Poucas vezes lançando seus
gritos na planície vermelha
[quando só, só quando] , com
o toco de cigarro aceso entre
os dedos.

Velho marinheiro magro
com seu cotovelo ossudo
fumando nos degraus da igreja,
do hospital, nas soleiras das casas,
na penumbra do outono, sem saber o
caminho ao mar de volta [nem como
devolver água à água e sal ao sol],

com dois pés no sonho,
pisando hastes de trigo
seco [ou joio],
 
quer seja ali chão de
pedra ou cimento [de
lã ou linho],

os olhos fixos no
pássaro marinho,

meio mareado meio
flutuando, meio perdido no trajeto
curvo das gaivotas [e das aves todas],

lembrando do velho santo de madeira
do pau oco e do profeta de gesso [ou pedra]
feito pelas mãos do Aleijadinho.

Na própria mão, o saco de estopa, 
na testa as veias em alto relevo,

uns poucos versos na memória
e a ficção que hoje é a voz dela:
a sereia.

Aquele verão não durou,
o tempo foi traiçoeiro [meio
tanto meio tarde meio lento],
avançando na água e enchendo
a canoa d'água [a propósito, pela
metade – não inteira] - de água
verde.

A âncora enferrujando ao
fundo do mar salgado,

os dedos amarelos de ferrugem
e pelo fumo picado, enferrujando,
a proa singrando o mar anacrônico
meio tarde meio cedo meio além
-do-tempo-do-mar-sem-tempo,

a proa do barco singrando a imensidão
da paz ondulante excessiva celeste.

[E o carrilhão de nuvens].

A boca vincada, os olhos
insones remelentos, os versos
imorais pesados [ah, o velho sujo:
Charles Bukowski],

o toco de cigarro na mão, a luz salgada,
o hálito triste e lascado por dentes
colecionando cáries,

a fronte quebrada e alquebrada no frio
dos batentes das portas e esquadrios
das janelas emperradas [que não mais 
abrem],

olhos amarelos
como os do leopardo

[olhos amarelos de icterícia,
de cirrose],

fiapo de voz antes do grito vermelho,
ócio e caminhadas na voz quase apagada
ao entardecer ao enegrecer ao vermelhecer
do tempo,

fiapos de voz na arrebentação vespertina
das velhas ondas e na maresia presa no
olfato e na garganta,

fiapos de voz um só fiapo no tombo e na
queda seca,

fiapos de voz nas costas encurvadas nas
marés baixas no ancoradouro.

Fiapos de voz na onda negra e na planície
vermelha,
versos rezas ao anoitecer ao entardecer e
nas manhãs frias de lamúrias veladas pela
ventania.

Saudade da paz dos grilos sob a trovoada
gigante,

do punho cerrado de Deus contra os homens
[e de seu punho cerrado clamando a Deus na
planície],

agora sem poder acreditar arquejante trêmulo,
cinquenta e poucos anos de versos e genuflexão
de joelhos dobrados e se dissolvendo em ternura
e sal

[aquela ternura borrada de amarelos],

sem poder acreditar no céu rabiscado na chuva
encharcando os ossos, sem poder acreditar na
cortina d’água prateada e na tristeza como
personagem principal.

Cinquenta e poucos anos tão mal gastos e
sem poder acreditar nos ventos mornos
no pólen no caminho de volta pra aldeia,
cinquenta e poucos anos sem poder
acreditar no verbo, mas mesmo assim rezando
recitando e rezando recitando e rezando versos
de marinheiro de louco de ébrio de velho-que
-vale-pouco-porque-quase-morto, na extensão
da interminável planície,
 
sem poder acreditar nas tantas
cicatrizes,

na inocência e na passagem do
tempo,
 
nos fetos e nos rebentos que não
vingaram,

sem poder acreditar no poente,
no sonho abatido a machadadas,

sem poder acreditar nas derrotas
do comissário do almirante, no tempo
que passou sem avisar, nas pedras do tabuleiro,
na  conclusão do jogo, no fim do amor.

Sem poder crer na face coberta de
uivos,

nos musgos do mar e moluscos,
na solidão das algas e corais

[no arfar dos peixes miúdos],

sem poder crer na imperturbabilidade
das pedras e na mudez da música que
se desfez, na fábula que se desfaz,
sulcando as ondas mais ao sul,

com seus cabelos despenteados pelo
vento [Heitor ou Homero]: remo de madeira
cortado ao meio,

garça que se parte em voo
[graça de pintura chinesa],

meio mínimo demais meio aranha sem
três patas, meio espectro meio roxo meio
véu rasgado, velho macilento e marinheiro,
meio camponês sem achar o seu chapéu de
palha,

meio cego meio coxo meio eletrificado meio
perdido meio morto meio cambaleando molhado e
torto meio trêmulo e torturado em seu ferido orgulho
de soldado do mar sem arma [corda, anzol, casa ou trabalho],

examinando os danos nas pastagens secas,
os lagartos deitados nas sombras, os ratos
da planície, sem poder acreditar nos braços
flácidos,

na fome na velhice no temporal no xale de
flores [nas lágrimas sem som, na dor sem
ruído],

nos bulbos ressecados das plantas de ontem,
na aspereza lisa das conchas do mar, na febre
e na voz que se esconde na nervura da folha que
se esquece ao longe, na carroça abandonada, no cavalo
que morreu de peste e no poste que tombou apagando
as luzes.

Sem poder crer na lua minguando no céu
envernizado de preto,

nas manchas do leopardo,
no gatinho perdido no meio
do capim alto - soluçando, soluçando,
soluçando.

Cinquenta e poucos anos e sem poder
acreditar no calhamaço de notas sem valor,
nos lustres na balaustrada nos homens ilustres,
no porto no ancoradouro, meio tolo meio falso meio
fake meio freak meio foda meio inteiro desgraçado
- por isso mesmo, pela metade,

por isso mesmo com vontade de morrer mais
do que tudo no branco harmonioso do nada do
esquecimento, no silêncio ermo de um precipício
d’ água sem princípio

[morrer no Início da Criação, antes de ter sido],

morrer de bruços num mar de brumas
sob um céu sem pátria num poente cor
de rosa, morrer pelo resto de sua vida sem
dor sem alarde sem saudade sem ninguém

[a lhe zumbir no ouvido canções estéreis],

morrer na solidão da planície,

trocando a pena de viver pela pena de
um corvo, no verso de Edgar Allan Poe.

Reza a lenda


Marcelo Novaes


A primeira palavra que me vem a mente ao reler esse poema foi: monstruoso. É uma palavra moderninha e como tal, idiota, mas foi o que senti ao reler essa maravilha.




Reza a lenda 
[e deixa de ser lenda 
quando se reza, porque 
reza se torna] que Pitágoras 
teve de pagar ao primeiro 
aluno, para poder 
ensinar a sua 
arte. 

[Mas Pitágoras era filósofo 
e sua parte no lucro era outra: 
Arte Oculta]. 

Reza a lenda 
[e deixa de ser lenda 
quando se reza, porque 
reza se torna e em prece 
e história se condensa] que 
o muito saber não ocupa espaço, 
só muito tempo e esforço: estilhaça o 
corpo, às vezes definha, às vezes amassa. 

Reza a lenda [e deixa de 
ser lenda quando se reza, porque 
se fixa na tábua do tempo como prego] 
que Kafka teve apenas cinquenta leitores 
em toda a vida e que Baudelaire ganhou 
apenas dezessete francos por toda a sua 
obra. 

Reza a lenda [e a repete Gerardo 
de Mello Mourão, bardo velho - e 
porque a repete já é fato (velho bardo), 
sobretudo porque a repete ouvida da fala 
sofrida de amigo gago: esforço que sacraliza 
a fala em oração perene e indubitável] que a 
literatura é implacável e que só vale para dar 
testemunho. 

[O que já é muito]. 

Isso é o mesmo que quisera e dissera 
outro que rezava lendas e causos em poesia 
bem prosada e proseada, o velho e bom Guimarães Rosa, 
que não escrevia pra ninguém nem pra alguém [nem nonada], 
mas pro dia do Juízo Final. E só pra isso prosodiava o rapsodo 
no lombo do mundo todo: O Único Sertão.