sábado, 26 de maio de 2012

MARCELO NOVAES

 

 

 

 

 

Sampa Hotel














Trabalho nunca foi meu forte. Pode anotar aí. Eu quero ler a entrevista e quero a entrevista gravada, pra vocês não falsearem nada do que eu digo, beleza? Não quero saber de ouvir minha música tocada em três acordes, como se fosse Michel Teló. O negócio aqui é Ivan Lins.



Retomando a pergunta, gosto de dormir em hotéis. É mais prático. A última grana que ganhei foi suficiente, agora posso me dar ao luxo de dormir nesses hotéis do centro. Adoro o centro de São Paulo. Onde Plínio morava antes de brincar de ser burguês. Coloque aí Plínio Marcos, senão vai parecer que o burro sou eu. Isso: o dramaturgo do báculo e do terno puído, com sandália de dedo. Na Teodoro Baima, ele já morou. É desse centro que falo, do autêntico. Não falo de Paulista, falo de Consolação aqui em baixo, no centrão. Falo onde Santa Cecília quase se encontra com Higienópolis, o supra-sumo do luxo, ali quando a madame chora ao ler na correspondência do correio que seu CEP é de Santa Cecília, quando ela pagou preço de apartamento em Higienópolis. É quando eu rio. Assim, tipo Baronesa de Itu. Eu sei que tem uns nômades urbanos passando por lá, desalojados dos seus planos. Sacou do que eu falei? Estou falando do urbanismo descentralizador da cracolândia, lá mesmo em Santa Cecília, Marechal Deodoro até a Estação da Luz. Marechal Deodoro, isso, o metrô.


Não vai errar no mapa não.



Como eu ganhei dinheiro? Arrumando uns caras trinta anos mais velhos. Isso, eu já tenho mais de cinquenta. Limpando a bunda deles, convencendo os senhores que sem mim nenhum familiar estaria por perto sequer para lhes dar um copo d’água, coisas do gênero. Sim, arrumei dois assim pelas bandas de Santa Cecília, por ali mesmo. Não vou entregar os caras por “ética profissional”, digamos assim. Claro que pode colocar entre aspas. Há aspas na minha voz, preste atenção, cara. Limpando a bunda e dando água e outras gentilezas, convenço os tais senhores a mudarem seus testamentos, deixando de fora os parentes ingratos, os mal agradecidos. E eles chegam lúcidos ao cartório, claro. Tudo com testemunha e firma reconhecida. Coisa limpa. Tem um cara que trabalha comigo, um pouco mais novo do que eu. Os coroas costumam chamá-lo “menino”. Não, não revelo a idade. E meu nome é codinome, que fique registrado. Não vou dar ponto ao seu exibicionismo, nem munição pra familiar de defunto.



Beleza. Fazendo quase uma dezena de defuntos desses, eu me garanto. Já tenho jazigo conjunto, com documento falso, com grau de parentesco com um dos falecidos. Sim. O enterro também está garantido. Então eu ando pela praças, tomo minhas brejas com as putas das praças, e elas gostam de mim enquanto posso pagar. Praça Julio Mesquita, Largo do Arouche, Praça Ramos e adjacências, seguindo lá o viaduto Maria Paula, lá no início da Brigadeiro Luís Antônio. Sim. Lá no baixo, perto do marco central. Coloque aí que eu sou um cara nostálgico.



Bom, quando eu circulo por essas plagas tradicionalíssimas, tem bastante nigeriano entrando em portinha, saindo de portinha, tudo com relógio de ouro, tudo com cordão de ouro no pescoço. E os caras falam bastante em celular, falam em nagô que não são bestas nem nada. Sim. Também molham a mão de alguns polícias, por isso você os encontra naqueles restaurantes tradicionais do centro, almoçando às cinco da tarde, fazendo negócios. Tomam água mineral, quando não almoçam tarde. Ficam só negociando, sem chamar a atenção, pra quem não dá atenção. Ficou claro? Claro que eles têm suas festas privadas, alugam espaços de lazer, chamam angolanos que trabalham na mesma firma, essas coisas. Ninguém é de ferro. De vez em quando, vão em pares ou trios, nunca sozinhos, nas boates lá da Augusta, falando de negócios entre si, às vezes em francês, quando imaginam que as meninas não irão entendê-los. Além do que, muitas podem entender que não faz diferença nenhuma. Têm os rabos presos, estão outra ponta do mesmo negócio. E na hora da festa, com elas, eles falam a linguagem universal do amor e do dinheiro. Vai colocar aspas no amor ou não?



É. De dia eles compartilham mesas vizinhas, quando bebo cerveja com minhas negas e minhas minas. Profissas. Prefiro os travestis da Rêgo Freitas, Bento Freitas, Praça da República, Major Sertório e imediações. Alguns ficam embaixo do viaduto, embaixo do minhocão. Não faça trocadilho infame, vê lá. Prefiro essas fêmeas por opção, porque travesti é isso. Gostam de homem pra caralho, são fêmeas turbinadas, com mais pegada, e nunca fingem que gozam. Pode colocar aí todas as vantagens que eu enxergo nos travecos. Só essas, as mais elegantes, que não quero o impronunciável no seu jornal, justamente no número de estreia. Valeu?



É. Tenho uma namoradinha bem jeitosa, na região. Não entrego nem o codinome da trans. Não quero encheção de saco pro lado dela, nem azaração. E não tem trocadilho nenhum na primeira expressão. Gosta de mim pra cacete, isso eu te garanto. Não preciso encher ela de grana não, só dar carinho e pagar o hotel. A gente se vê sempre. Ela faz ponto lá, mas aviso no celular que quero vê-la, digamos assim, e a gente marca a qualquer hora. Amor sincero.



Ela tentou com garota, antes dos hormônios. Tem um filho de doze anos, que não vê. A mãe da garota, hoje uma mulher, cuida. Isso, quase ex-sogra. Se ela aparecesse pro filho seria bizarro, uma mãe-pai, um pai-mãe. Melhor poupar a criança, melhor poupá-la. A mãe não abre mão da maternidade. Claro que eu assumiria a paternidade ao lado dela que é o pai. Você está me chamando de mau caráter? Mas veja que a situação é bastante complicada, fora dos manuais. É. Hoje tem muita coisa fora do manual. O amor não cabe nisso.



Bom, você está interessado nos nigerianos. Se eu vejo cem deles em poucas quadras, entrando e saindo nas tais portinhas, como que a polícia não vê ou não faz nada. Eu já dei a entender, ou ainda mais do que isso, que a polícia vê sim. Mas prefere ignorar, levando um troco caprichado. As portinhas mudam segundo a ocasião: de fliperama a bar com maquininha caça-níquel ao fundo, num corredor lateral, geralmente numa entrada falsa perto do banheiro. Ou abaixo. O que? Se tem muito bar com essas maquininhas por aí? Você quer zoar comigo. Fala sério.



Certo. Na Barão de Limeira, Barão dos Gusmões, Júlio Mesquita, Rua Vitória, etc e tal, no “Cachorro que Chora” [é a maneira de eu chamar um restaurante da área] eles têm mais presença do que eu, claro. Dormem nuns hotéis três estrelas, onde estrelas dormiam outrora. Não deixa a frase de fora, porque prova que eu tenho sensibilidade e boa memória. Amo essa cidade que me deu tudo. Então, os caras “afros puro sangue” são boa pinta, dão caixinha alta além de bons cachês, pagam conhaque e bebida quente, essas coisas. Eu só bebo breja, só pago breja e rabo de galo para as mais afoitas. Os afros boa pinta nem precisam aprender português, sabe como é. Bebida quente deixa a fala mole. Fica-se poliglota. Até as analfabetas entendem.



Revitalização do centro? Está cheio de vida no centro. Depende do que você considera revitalizar alguma coisa. A cidade não está moribunda, não precisa de ressuscitação, entende? Não tem essa. Também não existe “vida clandestina”. É vida ou não é vida. Precisa ser vida registrada? Precisa bater ponto pra ser vida? Precisa de carteira assinada? Qual é o nome mais justo pra namorada que falei, a da Rego Freitas: seu nome de fêmea, ou seu nome de certidão? Não me vem com essa. Eu sou Plínio Marcos antes de sua conversão burguesa.



O que eu gosto de ver nas horas livres? Você está pondo aspas nessas horas livres, ou está me tirando? O negócio é o seguinte: todas as horas são livres pro cara livre. Eu gosto de andar nos Campos Elísios, gosto das pensões da Rua dos Andradas, Helvetia, Alameda Glete e imediações. Gostava de visitar um delegado na alameda Nothman. Nem sei se lá ainda tem delegacia, estão fechando tudo. Estão emparedando portas em nome de alguma suposta decência. E quero frisar, coloque aí: estão fazendo isso, se for este mesmo o motivo, com atraso de décadas. Nos anos oitenta eu já levava mina em hotel na Luz pra fumar pedra. E o dono do hotel era polícia. E as viaturas faziam vigília nos quarteirões em torno, não na boca. Está visualizando? Então é isso.



Já falei que sou nostálgico, do tempo de sair na mão com camarada desafeto. Nada de arma de fogo pra coisa pouca. Minha nostalgia é de Ademir da Guia, Domingos da Guia e Quinzinho, Rei da Boca, morto depois de cumprir pena, apartando briga. Morto na ponta da faca, em briga de terceiro. Pode por aí que ele é meu herói. Lenocínio devia ser o artigo do cara. Cafetinagem. Se ele tratava bem as meninas, não vou julgar o cara. Não sou Pai, Filho ou Espírito Santo. Coloque com maiúsculas, porque falo com respeito, e não quero gracinha nem gracejo fora de contexto.



Você não viu Pelé nem Zico, que eu vi já adulto, então não sabe o que é nostalgia. Pra você, futebol é a partir de Ronaldo, ou Ronaldinho. Ah..., agora você me fez uma pergunta inteligente: como, com tanta nostalgia, eu posso me fazer com caras trinta anos mais velhos do que eu? Perfeito. Gostei dessa. Justamente porque sou nostálgico que falei em trinta anos. É. Bem mais de cinquenta, beirando os sessenta já. Isso foi no início de carreira. Antes do lance do amor testamentário, eu vendia muamba. Garoto novo, não tinha estômago, esses escrúpulos e frescuras pós-adolescentes. Comecei já maduro no ramo. Hoje, me insinuo pra caras vinte anos mais velhos. Compro as fraldas geriátricas, dou banho. Guardo as notas das fraldas geriátricas. Se o cara for internado ou morrer antes de queimar o estoque, tento trocar na farmácia por coisa útil pra mim mesmo. Ou revendo. Mercadoria lacrada e em prazo de validade. Não se desperdiça investimento, e o tempo é o principal deles. Mesmo isso aí que você chama, sarcasticamente, de tempo livre.



Conquiste primeiro sua liberdade, falou? Vai gramar uns vinte anos trabalhando nesse jornal pra juntar algum.



Foi suficiente? Quero a entrevista na íntegra, valeu? Como eu falei: música de Ivan Lins. Uns quinze acordes, no mínimo. Quero conferir todas as nuances éticas, e minha memória urbana. Inatacáveis. Quem não me apreende com justeza não me faz justiça. Pode colocar aí. O provérbio é meu. Se tiver algum erro de redação é teu. Língua falada não tem ortografia.http://prosaspoeticas-marcelo-novaes.blogspot.com.br/

4 comentários:

  1. Vate,



    Trata-se de um pardieiro, na verdade.




    Abraço!

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  2. Wellington,

    Eu te considero um crítico, e isso nada tem a ver com academicismos, mas com saber ler. Quero mostrar algo do pseudo-confessionalismo de Jorge de Lima e Murilo Mendes.


    Jorge de Lima:


    Eram harpas com asas as harpias
    que vinham logo desferir seus ais,
    As suas faces eram lentas dálias,
    as suas unhas cordas retiniam.
    E elas tangiam suas harpas tristes,
    as belas brancas agitavam,
    iam e vinham em seus próprios giros,
    e em torno de seus cantos adejavam.
    Minha cabeça voava sobre as asas
    e esses ais e esses giros repetia,
    repetia e essas dálias respirava.
    Insânia: era em mim próprio que eu cantava,
    e era em mim próprio que eu gemia,
    aquelas vozes todas que se harpiam.


    Vamos lá: Harpias são harpas com asas que tangem harpas tristes, adejam, giram e gritam por sobre e em torno do poeta, que as descobre todas girando dentro dele, como vozes "harpiando". Bom, aqui se vê como se faz poesia confessional-mas-nem-tanto, até inventando um verbo ["harpiar"] derivado do jogo de imagens proposto pelo próprio Jorge. E quando ele quer dizer que os ais se repetem, e ele repete o verbo repetir. Carpintaria poética.


    Vamos a Murilo Mendes, o pastor de pianos:


    O Pastor Pianista

    Soltaram os pianos na planície deserta
    Onde as sombras dos pássaros vêm beber.
    Eu sou o pastor pianista,
    Vejo ao longe com alegria meus pianos
    Recortarem os vultos monumentais
    Contra a lua.

    Acompanhado pelas rosas migradoras
    Apascento os pianos: gritam
    E transmitem o antigo clamor do homem

    Que reclamando a contemplação,
    Sonha e provoca a harmonia,
    Trabalha mesmo à força,
    E pelo vento nas folhagens,
    Pelos planetas, pelo andar das mulheres,
    Pelo amor e seus contrastes,
    Comunica-se com os deuses.


    Vamos lá: Quem grita aqui não são as harpas ou hárpias [da mitologia grega], mas "os pianos de quem os pastoreia" [a imagem d'"O Pastor de Pianos" é um dos alter-egos, implícitos, de Murilo Mendes; algumas vezes esse pastor "oculto"/subentendido "lamenta a ausência dos pianos"; outras vezes, continua pastor, "apesar da falta destes"]. Os pianos de Murilo, quais Harpias, também transmitem "o antigo clamor dos homens". O elán homem/todos os homens/natureza/deuses está feito, pelo poeta-pastor.

    O "confessionalismo", nos dois casos, tenta abarcar o máximo do Outro [o Mito ou Todos os Homens]em mínimo espaço.


    Literatura implica em algumas habilidades. Escolhi ilustrar algumas com esses dois.



    Abraços, amigo Vate!

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  3. João Cabral fez um comentário sobre isso, mais ou menos assim: falar das coisas, já é uma maneira de falar de si mesmo.
    Quando um escritor cria um assassino ou um pateta, ou uma prostituta, faz isso por alta capacidade de viver mundos e absorvê-los, mas claro que há no personagem algo dele, ou de sua vivência. Um escritor não poderia escrever sobre uma prostituta sem conhecer uma. Agora não é preciso viver o personagem, lógico.
    Falei a coisa de Cabral para chegar a isto: Ja li poetmas seus e chorei e não vejo graça em muitos dos poemas de Drummond. Não falo de superioridades, falo de como a poesia é reveladora de nós para nós mesmos. tenho de dar uma parada que esse bicho chato tá me enchendo... depois continuo.

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  4. Vate,


    Sim. Há algo da vivência e há, inclusive, a escolha dos temas. Mas também há esta elaboração técnica, como nos exemplos acima.

    Quando vc fala de empatia com alguns dos meus poemas, porque te disseram algo [fizeram ecoar algo "de vc em vc"!], há essa dupla face. Já houve quem me dissesse o seguinte: "Vc escreve bem, mas não fideliza leitores [o verbo escolhido foi este] porque se interessa por temas que não dizem respeito [=não interessam] a muita gente". Tem este outro lado. Peguemos Pablo Neruda, com seus poemas de amor, muitos deles de inegável qualidade: o tema encontra ressonância em muita gente. Aceito e concordo com a observação que me foi feita. Então, uma das razões de alguns poetas serem mais lidos [qualidades técnicas à parte] também diz respeito a esta ressonância, além das variáveis da visibilidade [quem ouve o nome de quem citado por quem e em qual veículo: variáveis da propaganda, massificação, hiperexposição e afins]. Ressalto, aqui, que "fidelizar" é um verbo bancário: quem "escreve para fidelizar leitor" não escreve, de fato. Há quem escreva algo que encontre maior ressonância por estar mais em sintonia com as questões gerais de seu tempo, cultura, etc e tal, mas não "para fidelizar". Se o cara escrever tendo isso em mente, é um dublê, um animador de auditório, um repetidor de slogans, um pseudo-escritor. Não é o caso de Pablo Neruda, popular e bom poeta. Não é o caso de Manoel de Barros, o poeta que mais vende no Brasil nos dias de hoje, um poeta de aforismos que um monte de gente tenta copiar/mimetizar, mas cujo estilo é inconfundível e é "um achado legítimo de um modo de dizer dele", Manoel. Se alguém tenta mimetizá-lo costuma dilui-lo em tudo: tom, vigor, timbre, espontaneidade. O viés pessoal de cada um a respeito dos temas de sua eleição e a decisão de explorá-lo por escrito acabam "pedindo por uma voz". Esta voz pode ser mais ou menos simpática, sintônica, bizarra, estranha ou quase-alienígena ao ouvido do leitor contemporâneo. Por isso mesmo, digo que acho surpreendente o número de leitores que já chegaram aos meus textos, porque tenho plena consciência da peculiar escolha dos meus temas e do meu tom, e sei que não são tão atraentes a muitos.




    Quem escolhe os temas da escrita tem razões suficientes para elegê-lo. A partir dessas razões e "do tom da apreciação do tema", o sujeito "acha a sua voz" [ou constrói a sua voz, se vc preferir]. Como Tom Jobim tem seu jeito de modular as coisas sonoras, diferentemente de Guilherme Arantes. Uma vez encontrada a voz, mesmo se o cara falar do "ovo da galinha", vc perceberá a dicção poética, e dirá: "Eis João Cabral!", porque a voz é sua "digital poética". Se Marcos Valle faz um jingle [e ele já fez muitos], quem o conhece dos discos, e não dos jingles, fala: "Eis Marcos Valle!". É isso. O mimetizador barato [ou fidelizador menos autêntico] falará/escreverá como os atendentes de telemarketing: vc ouve as primeiras frases e já adivinha o discurso [quase gravado, ainda que a voz seja ao vivo] que se seguirá a elas.


    Um grande abraço, Vate!

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