terça-feira, 3 de julho de 2012

DA JANELA









Você não tava, não viu, só saberá por eu dizer. Foi já no fim da festa, Todos bêbados, todos menos eu. Sentei ao lado dele, ele segurou minha mão, eu beijei a dele. havia só uns poucos, já tinham ido quase todos. Mas foi silêncio, foi admiração. Se um gesto pode mais que tudo o que pode a palavra, eu arrisco uma frase sobre o gesto de ambos: respeito.
Eu respeito quem não tem mais nada para fazer que não seja salvar o mundo. Isso é coisa que me intriga. Eu não pretendo salvar nada que não seja  aquilo da noite de sábado. O que quero, pra ir pra frente contra os males todos, e não vencer-los todos, mas aplacar as dores, diminuir o medo. Diminuir o medo. Sim, isso é que o fiz ao beijar a mão dele e ele o fez ao segurar a minha com força. O medo é forte e poderoso, faz-nos temer o ficar sozinhos. Quando eu beijei a mão de meu pai tive paz, mas o medo veio como um ser, uma coisa que zombasse de mim. Subi e chorei. Pedi forças a Cristo, pedi misericórdia também. Tive pena de muitos e pouca de mim. Tive pena dos enganados, dos que não beijam a mão de seu pai. De minha parte foi medo, um medo inexplicável, dorido, um medo. Queria guardar comigo aquele beijo e guardo como no poema de João Cabral que fala de uma saudade tão efetiva que o poeta pode sentir o peso do beijo trinta anos depois. Está dito tudo. O poeta é João, o medroso sou eu. Fiquei na janela vendo meu pai lá embaixo. Ele falava eu chorava com medo.  Vamos lá, vamos lá, moleque chorão, é tudo que sabe escrever? é só do que pode falar? 
É. 
Querendo poeta, procure outro canto. Querendo milagres, outro santo. Aqui só encontrarás a mim. Sim, na janela de um apartamento olhando o pai lá embaixo e chorando com medo. Chorando com medo como um menino boboca ou como um babaca adulto. Enquanto meu pai contava suas piadas idiotas, enquanto ele não me via. Choro com medo dos 64 anos de meu pai. Choro com medo dos carros e as suas buzinas que são sons lindos porque meu pai está ali embaixo, eu o vejo. As luzes... meu    Deus! onde caberiam essas coisas sem a voz dele? no meu coração. Mas me pesaria tanto o peso dele.


Você não tava, não viu. Tudo que preciso  é de paz, de um norte, uma corda. A mão dele me dá isso.  Já disse acima que foi uma cena bonita e tocante, o que não disse, e mesmo que você estivesse vendo não veria, foi o peso do tempo sobre o homem, o peso do tempo sobre o tempo. O que ninguém viu foi o medo. O meu medo de uma mão que tenho nos lábios. De uma mão que se fará memória tão ativa (lembrei a frase de João) que conservará o beijo dado nela em minha memória para sempre, ainda que por mil vidas, ainda se eu pensar já morto, ainda que eu sumisse, ainda que diluísse. Uma lembrança tão ativa que só seria esquecida se eu não fosse o que sou, não tivesse nascido, nunca existisse.

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