segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

EMBRIAGAR-SE COM VINHO, POESIA OU VIRTUDE.














Liturgia das Horas Enfermas





MARCELO NOVAES








Eu te leio alguns apontamentos
que falam da vida de marginais
místicos e hereges.



Eu te leio
notas sobre a operária que
fabricava bombas que mataram
seu marido, convocado às pressas
para um confronto rápido.


10 dias.


Eu te leio sobre o submarino
afundado explodido implodido
em oceano amigo.


Eu te conto
sobre o namorado já-viúvo
-antes-mesmo-de-casado, que
joga a rosa branca sobre a Rosa
Maria, presa num túmulo
gelado.


Eu te falo de dois seres perdidos
atrás da fuligem que não se
desfaz e não se dissolve nem com
sabonete, o resíduo que se impregna
na pele no ouvido no labirinto e no
senso de equilíbrio, depois de um
dia na fábrica de tecidos, na
indústria farmacêutica ou numa
mina de minério fino.


Mercúrio.


Eu te leio alguns provérbios vindos
do sudeste de um país longínquo,
com a esperança que te soem assim
o mais parecido com a Paz Celeste
nunca vista nem adivinhada.



Eu te
apresento uns versos de Baudelaire
como ante-sala do paraíso, ou porta
de entrada para outro inferno que,
só por ser diverso, já te traz
alívio.



Eu te apresento a biografia de um
homem aparentemente comedido
e decoroso, pudico, que disparou
metralhadora assasinando colegas
que estudavam juntos para aprender
o mesmo ofício.



Eu te recito de cor
alguma passagem bíblica que mais
pareceria a confissão de um outro
assassino ainda mais perverso e
ufanista que o primeiro, mais longe de
Deus do que nós dois estamos dos ovnis,
e eles de nós.



E te recito outras
passagens e paisagens do mesmo
Livro que inspiraram homicídios e
incêndios, destruindo legados inteiros
de povos antigos não-cristianizados,
matando queimando convicções em
corpos transtornados e
contorcidos.




E te mostro trechos e comparo com
os discursos dos preclaros líderes da
Ku Klux Klan, acompanhados dos uivos
das multidões com seus slogans
avaros.



Eu te recito um obituário dos seres
que tiveram os crâneos fraturados
quando lhes caiu um obelisco muito
alto altivo, inaugurado em homenagem
a um demagogo baixinho, histriônico e
parvo: Hitler.



Eu declamo de cor os
Mistérios do Rosário escondidos atrás
de uma estante de livros sobre diretores
de cinema e artistas gráficos.



Não vale
nem adianta pedir emprestado os óculos
de John Lennon, nem experimentar um
ácido pra ficar mais
esperto.



As portas
da percepção estão fechadas aos viciados
em drogas aos astronautas químicos, aos
santos lisérgicos de olhos
arregalados. Alguns já estão mortos. Outros,
internados
em sanatórios, inválidos para aquele difícil
percurso de atravessar portais e umbrais
escusos, invalidados em seus discursos
descosturados porque desconexos,
porque
mais ricos em lapsos do que em



Melhor ficar com os reparos desabafos e
confissões de Oscar Wilde, crítico irônico
e raro. Ou com as estocadas de Bernard
Shaw, nesse sentido quase um irmão do
primeiro,embora mais caústico e
ríspido.



Eu te apresento, por fim, meu boletim
de ocorrência contra você, pelo atentado
violento ao pudor de tentar me ler sem
atentar para o tanto que se lhe dá, sem
que nada tenha de me pagar.



Estelionato.


Por fim [um segundo fim mais fim do
que o primeiro, porque mais
melodramático e
menos justiceiro], eu te canto parabéns com
a voz de Marilyn Monroe, quase
agonizando,
chapada, anulada em seu encanto pelo encan
-tamento que causava.



Eu te canto com voz
pastosa patetizada, infantilizada idiota,
como
cantou a coitada ao presidente
assassinado.




E
assino embaixo, pondo minha bela cara à tapa,
adivinhando teu semblante atônito e
estupefato.


BAUDELAIRE


EMBRIAGUEM-SE
É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo horrível do Tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso.

Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se.

E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: "É hora de embriagar-se! Para não serem os escravos martirizados do Tempo, embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso". Com vinho, poesia ou virtude, a escolher.

Um comentário: