MARCELO NOVAES
O Coração das Coisas
E
foi porque eu quis acesso ao coração das coisas. É certo. E isso deixou
a marca do tremor na ponta dos dedos [e uma lancinante voz ao fundo,
como backing vocal de cada sussurro ou silêncio]. Foi porque eu quis
acesso que me tornei pai sem filho e pai de tantos órfãos. Foi só por
isso. E existe um coro que descende lá detrás; sim, do coro grego e do
longo lamento sumério. E foi porque eu quis tocar o coração das coisas
[deixando-o talvez intacto] que meu dedo nem pousou, mas treme assim, a
dois milímetros de tocar o fundo veio [e a vértebra dorsal do
transmundano sonho]. E foi só porque eu quis.
Manuel Bandeira
TESTAMENTO
O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros — perdi-os...
Tive amores — esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.
Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.
Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.
Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!
Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!